Se eu disser que Clarissa já nasceu com senso de justiça eu não vou estar mentindo. A bichinha saiu antes da hora da barriga da mãe, porque não achava justo fazê-la esperar por 9 meses e engordar tanto. Aí, ela veio ao mundo. E o doutor teve que dar uma palmadinha, porque ela achava que não tinha motivo pra chorar.
Passados uns anos, vieram dois irmãos mais novos: Hugo e Gabriela. Só que a Gabriela não tinha os olhos verdes da Clarissa. Puxou à mãe. O Hugo não tinha o nariz pequeno igual ao da Clarissa. Puxou ao pai. E numa dessas brincadeiras que a gente inventa quando é pequeno, a Dona Juceni, avó das crianças, flagrou Clarissa brincando de fazer cirurgia plástica pra aumentar o seu nariz e mudar a cor dos olhos. “Essa menina tem cada uma”.
Na adolescência, Clarissa terminava e voltava com o primeiro namoradinho. Aí terminava de novo. E voltava mais uma vez. A mãe achava que era normal nessa idade. “Coisa de menina nova que tá conhecendo o amor”. O pai só gostava da parte do “terminava”. Mas o que Clarissa fazia mesmo era seguir o relacionamento da sua melhor amiga, que também vivia terminando e voltando com namorado. Assim nenhuma das duas sofria ou ficava feliz sozinha.
Ela foi crescendo e o senso de justiça dela crescia junto. Era só ela achar que uma peça de roupa estava com um preço absurdo naquela loja que, discretamente, sujava o tecido de batom, puxava um fiozinho aqui, outro ali e pronto: menos de uma semana depois, aquele vestido da cor bonita e do corte elegante sairia por quase metade do preço. Justo não?
Outra coisa que eu descobri que essa notável justiceira fazia era atrasar a conta de luz de propósito. Só pra vizinha desligada achar que o problema era da empresa que fornecia energia e não dela, que vez ou outra esquecia de pagar a conta.
A verdade é que a Clarissa vive pra ver os outros felizes. Isso sim. Se ela sente que sua felicidade está sendo injusta, ela dá um jeito. E isso sempre cresceu tão forte dentro dela que, se eu contar vai parecer uma história que eu inventei, mas juro que não.
Ontem, passeando com o seu cachorro Golias, por um caminho alternativo, deu de cara com um petshop. Reino dos Bichos era o nome. Foi aí que tudo começou. Golias não parava de latir. Os pombos correram para o canto de uma gaiola. Os periquitos berravam. Um dos filhotes de maltês respondia com aquele latido que não assustava ninguém. E os gatos, bem, os gatos fingiam que não era com eles.
Clarissa pareceu entrar em transe, só observando. Aí, rapaz, não deu outra: olhou para o Golias, quis fazer justiça em nome do seu vira-lata livre, leve e solto e abriu as gaiolas, libertando todos os bichos da loja.
Mas antes que entregasse o segundo filhote de maltês a quem passasse na calçada, o dono da Reino dos Bichos gritava aos berros para ela parar. Clarissa ignorou e ele a agarrou pelo braço. Ela relutava em entregar o filhote de cachorro que segurava e o Golias, que aprendeu a ser justo com a dona, enfrentou o dono do petshop.
Foi aí que um dos funcionários da loja ligou 1-9-0 pra chamar uma viatura. O cabo Silveira nem demorou muito pra chegar. O dono da loja insistiu em fazer um BO, a Clarissa insistiu em explicar sua mais nova bravura e o Golias insistia em latir. No meio da confusão, o cabo Silveira levou todo mundo para a delegacia: a Clarissa, o dono da loja e o Golias.
Quem contou tudo sobre a Clarissa e sobre o que aconteceu no petshop pro delegado foi o dono da loja e a família da Clarissa. E eu não poderia deixar de escrever essa história. Primeiro, porque eu sou o escrivão da delegacia e é meu trabalho. Depois, porque acharia injusto que ninguém soubesse dela.